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quarta-feira, 18 de junho de 2008

A briga

Sala um tanto suja, duas e meia da madrugada. Os vizinhos se acalmaram porque o apartamento se acalmou, mas a calmaria é passageira, porque o ódio é repentino porém aprofundado, prolongado, verdadeiro, pacional.

Onde reside aquele lindo amor? Onde estão os votos de perdão e compreensão? Para onde foram mandados os bons conselhos e olhares de peixe morto? Os clichês que tanto me dizes não valem para ti? Eu rio de sua desgraça e cuspo sobre ela e sobre todas as que vierem. Beba um pouco de seu próprio veneno, afogue-se em sua própria tempestade em copo d'água.

Morra, nesse triste repentino...

_ E preste atenção no que te digo!
Gritou ela, com a garrafa de vodka na mão e os cabelos totalmente despenteados.

Eles não fumam. Ou pelo menos não fumavam até então. Mas as visitas deixaram um rastro de cigarro casa a dentro e a fumaça ainda empregnava os móveis e a sala; principalmente a sala, o cenário daquela tragédia moderna. As roupas pelo chão, a meia luz, o abajur atrapalhadamente colocado. Ele encostado no sofá, mas sentado no chão: camisa semi aberta e cueca, mais nada. As meias de algodão ainda nos pés mas os sapatos abandonados ao longo do corredor. Ela com outra camisa dele, também mal colocada, deixando seus lindos seios caídos à mostra. Uma calcinha de renda, as sandálias na porta. Os cabelos, eu já falei dos cabelos? Os cabelos despenteados e já encaracolados pelo suor do sexo e mesmo pelo calor do ambiente abafado. As cortinas que escondem a varanda, a rua tranqüila lá fora e, aqui dentro, tudo pesado, sobretudo a respiração. Ele não reage.

_Não me dê a sua indiferença seu merda! Agora ela chuta aquele corpo meio gordo e um pouco peludo. Ela chuta na altura de sua costela esquerda, mas a gordura localizada e os litros de álcool o fazem rir daquilo tudo. Ele cai para o outro lado, e por um segundo sai de sua transe:

_O que você quer, mulher?! Vai tomar nesse teu cú de merda... merda, cú, sacou?! Tudo a ver... Ri gostoso, despreocupado, escorregando até encontrar o chão. Ela está com muito ódio, chuta mais o seu ursinho, que rasteja pro meio da sala. A cada chute, um novo gole de vodka. Um último chute e ele agarra sua perna

_Vai pra puta que pariu, sua puta de merda! Ele puxa a perna com força, ela cai de costas pro chão. A garrafa espatifa-se e ela corta a palma da mão. Também bate com a cabeça na quina de alguma coisa que eu não sei se é a cadeira ou a mesinha. A mão sangra e a cabeça dói. Ele se preocupa. Acabou o transe?

_Puta que pariu! Olha o que você fez, sua doida... Ele não consegue se levantar.

_Você quer me matar seu porco imundo... Ela senta e põe a mão na cabeça. Na outra mão, o gargalo da garrafa e sangue.

_Você tá sangrando... Ele chora? Ou é suor? Ele está babando.

_Quem é a vagabunda? Uma dor de cabeça horrível e o mundo (a sala) girando alucinadamente.

_Me diz quem é aquela vagabunda!

_Eu não sei, eu tô bêbado porra, respeita minha viagem meu irmão! Puta que pariu! É você que eu como toda noite, deixa essas mulheres da rua em paz...

_Ah, quer dizer que tem mulher na rua?!

_Não, não tem meu amor, só tem você...
Ele se aproxima dela, que está possessa e armada com um gargalo de garrafa na mão.

_Sai de perto de mim seu porco imudo, fedorento, suado; sai se não eu te mato! Ela aponta o gargalo para ele, ele olha desconfiado, certamente perguntando-se qual dos muitos gargalos seria o verdadeiro, e em seguida começa a rir, excitado:

_Vai me matar, vai?! Mata pra você tomar no cu bonito, mata. Mata e bebe meu sangue, porque aí pelo menos você é internada como louca e ninguém te mata na cadeia, sua cachorra, ingrata. O dedo na cara dela, os olhos sonolentos. Ela com os olhos chorosos de mulher traída.

_Mato - gargalo na cara dele - e faço questão matá-lo devagar, bem sofrível, bem... Ele apalpa o gargalo com a mão esquerda, não sente a dor do corte. Ela olha adimirada. Ele toma o gargalo e joga longe. Bate na porta. As vizinhas se assustam.

_Chama a polícia, Mazé! Eles tão ameaçando se matar!

_Vem Rogério, arromba logo a porra dessa porta! Sai do meio
Euzira!

_Virgem santísima, Mazé, que palavriado é esse mulher?!

As duas se calam. Rogério se arrasta ao longo do corredor com sua barriga de cerveja, o chinelo velho e o roupão aberto. Seus olhos remelados e os pentelhos aparecendo por conta do pijama acabado.

_Vai pra casa vestir uma roupa Rogério!

Euzira baixa a cabeça e arruma os bobs. Ela fica vermelha com o que vê, aliada com o que já ouviu.. Ela certamente está toda molhada. Há quanto tempo não fica molhada aquela jovem senhora viúva há não sei quantos anos?

Dentro do apartamento, só se escutam sussurros.

_Eu mato e morro por você, sua vaca filha da puta. Você é a única.

_Você chamou por outra seu merda, você chamou por outra!

_Eu chamo por todas as que passaram, eu chamo pelas que virão... mas você permanece nêga.

_E pra que tanto palavrão, você não é assim...

_Eu tô bêbado caralho! Drogado, totalmente grogue, e você quer que eu...

_Eu quero você...

_Você já me tem...

_Até quando?!
Os olhos cheios d'água.

_Você é cada dia um novo estranho, quando acho que já sei você é outro, e esses seus amigos, e esse povo que não te larga, essa sua vida louca, você, eu...

Ele cala a boca dela com um beijo enquanto sua mão aproxima seu corpo do dela de maneira interessante. A mão cortada que começa a sentir dor, a outra mão cortada que já não sente dor. O suor e o cheiro estranho, a pele pegajosa, os pêlos, o tapete, o sofá, a cortina, a sala.
O drama moderno que finda no sexo.
Os vizinhos na porta imaginando coisas e a solidão de cada um: uma que pensa no marido mais tarde, a outra que pensa no marido alheio qualquer hora dessas, ou no banheiro gostoso e no toque delicado que tem sido seu único parceiro desde... desde sempre? Elas se olham, vermelhas, e em seguida despedem-se. É melhor cada uma ir durmir mulher...

O amor na sala de estar, apesar do caos, dos sentimentos confusos, de tudo.

O amor sempre vence?

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